Friday, 26 March 2010

"... Na Ásia acredita-se na reincarnação: isto é, renasceremos na próxima existência de acordo com o que vivemos nesta. Se vivemos de maneira desumana, agressiva e destrutiva, vamos pagar por isso na próxima vida. Não nos tornamos necessariamente um animal, mas voltamos a ser humanos, vivendo uma vida mais destrutiva e com mais sofrimento, porque anteriormente não vivemos uma vida cheia de beleza. Aqueles que acreditam nesta ideia da reincarnação, crêem apenas na palavra, e não no seu sentido profundo. Deste modo, o que fizermos agora tem profunda importância para amanhã - porque amanhã, que é a próxima vida, vamos pagar (receber) pelo que fizemos hoje. Portanto, a ideia de se atingir "gradualmente" diferentes formas é essencialmente a mesma no Oriente e no Ocidente. Há sempre esse elemento tempo, o que é e o que "deveria ser".

Atingir o que deveria ser requer tempo, tempo como esforço, concentração, atenção. Como não somos capazes de atenção ou de concentração, há sempre um esforço constante para a prática da atenção, a qual rrequer tempo.

Tem de haver um modo totalmente diferente de abordar este problema. Temos de aprender o que é percepção, que é ao mesmo tempo ver e agir; estes são simultâneos, não estão divididos.

Temos igualmente de investigar a questão da acção, do fazer. O que é acção? O que é fazer?



I.(Interlocutor: pode ser masculino ou feminino): Como pode um cego agir, se não tem percepção?



K.: Já alguma vez tentou vendar os seus olhos por uma semana? Eu já o fiz por curiosidade. Sabe, desenvolvem-se outras formas de sensibilidade, os outros sentidos tornam-se muito mais despertos: quando nos dirigimos para a parede, para a cadeira, ou para a mesa, sentimos antes a presença delas. Mas aquilo de que estamos a falar é de estamos a falar é de estarmos cegos para nós próprios, interiormente. Reparamos muito nas coisas exteriores, mas interiormente estamos cegos.

O que é acção? Será sempre baseada numa ideia, num princípio, numa crença, numa conclusão, numa esperança, num desespero? Se temos uma ideia, um ideal, estamos a ajustar-nos a esse ideal; há um intervalo entre o ideal e a a(c)ção. Esse intervalo é tempo. “Serei esse ideal, porque, identificando-me com ele, com o tempo, esse ideal actuará, e não haverá separação entre a ação e o ideal.” O que acontece quando há este ideal e a acção que tenta aproximar-se dele? Nesse intervalo de tempo o que acontece?



I.: Uma comparação incessante.



K.: Sim, comparação, e tudo o resto. Se observarmos isso, que ação acontece?



I.: Ignoramos o presente.



K.: E que mais?



I.: A contradição.



K.: É, de facto, a contradição – o que leva à hipocrisia. Sou colérico, e o ideal manda: “Não sejas colérico”. Estou a reprimir, a controlar, a conformar-me, a tentar aproximar-me do ideal e, portanto, estarei sempre em conflito e a iludir-me. O idealista é uma pessoa que se ilude a si própria. Também, nesta divisão, há conflito. Há ainda outros factores que surgem



I.: Por que não nos é permitido recordar as nossas vidas anteriores? A nossa evolução seria muito mais fácil.



K.: Seria?



I.: Poderíamos evitar erros.



K.: O que quer dizer por vida anterior? Aquilo que viveu ontem, vinte e quatro horas atrás?



I.: A última i(e)ncarnação.



K.: Aquilo que se passou Há cem anos? Como é que lembrar-se disso tornaria a sua vida mais fácil?



I.: Poderia compreender melhor.



K.: Por favor, vamos passo a passo – você teria a memória do que fez ou não fez, daquilo que sofreu há cem anos atrás, o que é exactamente a mesma coisa que ontem. Ontem fez várias coisas de que gostou ou de que se arrependeu, que lhe causaram aflição, desespero, sofrimento. Há a memória de tudo isso. E tem-se a memória de há mil (um milhão, uma infinidade de ) anos, que é essencialmente a mesma coisa que ontem. Por que chamamos a isso “reincarnação”, e não reincarnação de ontem, que renasceu hoje? Não gostamos disso porque julgamos que somos seres extraordinários, ou que temos tempo para crescer, para vir a ser, para reincarnar. O que reincarna é aquilo para o qual nunca olhamos – a nossa memória. Não há nada de sagrado nisso (mas o sagrado existe ). A nossa memória de ontem nasce hoje naquilo que fazemos; o ontem controla aquilo que fazemos hoje. E um milhar ( um sem princípio ) de anos de memórias está em acção através de ontem e de hoje. Portanto, há uma reincarnação constante do passado. Não vamos pensar que esta é uma saída hábil para isto, uma explicação. Quando compreendemos a importância da memória e da sua total futilidade no campo psicológico (e de todo o mal), então nunca mais nos interessará falar de reincarnação.

Perguntamos: O que é acção? Será que ela é sempre livre, espontânea, imediata? Ou estará sempre presa ao tempo, que é pensamento, que é memória?



I.: Observei uma gata a perseguir um rato. Ela não pensa: “É um rato”;

Imediata e instintivamente, apanha-o. Parece-me que também nós temos de actuar espontaneamente.



K.: Não se trata de “temos de” ou “devemos”. Penso que não dizemos “devemos” ou “temos de” quando compreendemos o elemento tempo na sua essência. Estamos a perguntar a nós mesmos, não verbal ou intelectualmente, mas profundamente, interiormente, o que é ação? Será que a acção está sempre ligada ao tempo? A ação nascida da memória, do medo, do desespero, está sempre ligada ao tempo. Haverá uma acção que seja completamente livre e, portanto, sem tempo?



I.: está a dizer que alguém que vê uma serpente (ou um tigre), age imediatamente. Mas o número de serpentes cresce com a ação. A vida não é assim tão simples, não há apenas uma serpente mas duas, e isso torna-se como que um problema matemático. E, então surge o tempo.



K.: Diz que vivemos num mundo de tigres e que não nos confrontamos apenas com um mas sim com dúzias deles em forma humana, sendo eles brutais, violentos, avarentos, ávidos, cada um perseguindo a sua satisfação particular. E, para viver e agir nesse mundo, precisamos de tempo para “matar” tigre após tigre. O tigre sou eu – está em mim – há dúzias (infindos) tigres dentro de mim. E o senhor ( é mesmo senhor, pois I. é interlocutor, feminino ou masculino) disse que, para nos livrarmos desses tigres, um a um, precisamos de tempo. É precisamente isso que, em absoluto, estamos a pôr em questão. Aceita-se que é preciso tempo para gradualmente se matarem, uma após outra, essas serpentes que estão em “mim”. O “eu” é o “tu” – o “tu” com os seus tigres, com as suas serpentes – tudo isso também é o “eu”. E perguntamos: “Para quê matar, um após outro, esses animais, milhares de serpentes, se, quando acabar de os matar, já estarei morto?”

Haverá então, um modo – por favor, escutem bem, não respondam já, descubram em silêncio – de nos vermos livres de todas as serpentes, não gradualmente mas imediatamente? Serei capaz de ver o perigo de todos os “animais”, de todas as contradições que existem em mim, e libertar-me deles instantaneamente? Se não puder fazê-lo, não há esperança para mim. Posso fingir de muitas maneiras, mas se não for capaz de apagar imediatamente tudo isso que está em mim, serei para sempre um escravo, quer venha a renascer numa próxima vida ou em de mil vidas. Assim, tenho de encontrar modo de agir, de olhar que, no instante da percepção, ponha fim ao dragão particular, ou ao macaco que há em mim.



I.: Então façamo-lo!



K.: Esta questão é realmente muito importante; não se pode dizer apenas “façamos isto” ou “não façamos aquilo”. Tudo isto requer uma investigação extrema; não me digam que já conseguiram ou que devem fazer isto ou aquilo, isso não me interessa – quero descobrir.



I.: Se eu ao menos pudesse ver isso.



K.: Não, por favor, não diga “se”.



I.: Se eu compreendesse uma coisa, deveria pôr isso em palavras, ou deixá--lo ficar silenciosamente em mim?



K.: Por que traduz o que está a ser dito numa linguagem muito simples, para as suas próprias palavras – em vez de ver o que está a ser dito? Há muitos animais dentro de nós, muitos perigos. Poderei libertar-me de todos eles com uma só percepção – vendo-os imediatamente? A senhora poderá ter feito isso, não ponho em dúvida se o fez ou não; isso seria falta de respeito da minha parte. Mas estou a perguntar: será que isto é possível?



I.: A acção tem duas partes. A parte interior, a que decide, ocorre de imediato. A outra, a ação em direcção ao exterior, precisa de tempo. Decisão significa ação interior. A ponte que liga estes dois aspe(c)tos da ação precisa de tempo. Há aqui um problema de linguagem, de transmissão.



K.: Compreendo. Há acção exterior, que precisa de tempo; e ação interior, que é perce(p)ção e ação. Como é que esta ação interior, com a sua percepção, decisão e ação imediatas, pode ligar-se a outra acção que precisa de tempo?

Se me permite salientar, penso que não é precisa nenhuma ponte, nenhuma ligação. Vou mostrar-lhe o que quero dizer. Compreendo muito claramente que, para ir daqui para ali, leva tempo, aprender uma Língua exige tempo, fazer algo fisicamente também precisa de tempo. Interiormente, será mesmo necessário o tempo? Se eu entender a natureza do tempo vou lidar correctamente com o elemento tempo no mundo exterior. Portanto, não começo pelo exterior, porque reconheço que o exterior precisa de tempo. Mas, pergunto a mim próprio (se) na percepção interior, na decisão e na ação, tem de haver tempo. Assim pergunto: “Será mesmo necessária a decisão?” Decisão que é afinal um instante de tempo, um segundo, um ponto. “Eu decido” quer dizer que há um elemento de tempo; a decisão baseia-se na vontade e no desejo, e tudo isso é tempo. Assim, pergunto: “ Por que razão terá a decisão de entrar em tudo isto?” Ou fará a decisão parte do meu condicionamento que diz: “Precisas de tempo?”



[J.: Desculpem (onde estão?): mas, não temos de acabar com todos os condicionamentos? Porquê, por exemplo, termos de aprender mais do que uma língua?

]

.Haverá percepção e acção sem decisão? Isto é, tenho consciência do medo, um medo gerado pelo pensamento, pelas memórias, pelas experiências, um medo de ontem encarnado hoje (ou medo do amanhã). Compreendo toda a natureza, estrutura e essência do medo. E ver isso sem decisão éacção, que é libertarmo-nos dele. Será isso possível? Não digamos que sim, que eu já consegui, ou que outra pessoa o conseguiu também – isso não interessa. Poderá esse medo cessar instantaneamente, logo que surge? Há os medos superficiais, os medos do mundo. O mundo está cheio de tigres, e, esses tigres, que fazem parte de mim, vão destruir-me; por conseguinte há uma guerra entre mim – um tigre – e o resto dos tigres
Há também o medo interior – estar psicologicamente inseguro, ter dúvidas – gerado pelo pensamento. Este gera prazer e medo (o mesmo) – vejo tudo isso…

J.: Desculpe (não é para sorrir)… Mas a grande maioria continua a não compreender que medo = dor = prazer = pensamento = memória…

K.: “Calma, vamos por partes”… Vejo tudo isso. Vejo o perigo do medo, do mesmo modo que vejo o perigo de uma serpente, de um precipício, ou de uma corrente de águas profundas – vejo completamente o perigo. E o próprio ato de ver é o findar do medo, sem intervalo de um breve segundo que seja para tomar uma decisão.

I.: Algumas vezes pode-se reconhecer um medo e mesmo assim ele continuar.

K.: Temos de abordar este assunto com muito cuidado. Antes de mais, não quero ver-me livre do medo. Quero que ele se exprima, quero compreendê-lo, deixá-lo fluir, deixá-lo vir, deixá-lo “explodir” em mim. Não sei nada acerca do medo


"



In: págs. 199 a 206(p), de "O Voo da Àguia", de Jiddu Krishnamurti, da Editorial Estampa, Lisboa - 1971

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